sábado, 25 de setembro de 2010

Euristides Clumsy (actualizado)

- Mas afinal onde está o morto, pelo amor de Deus??!!
- Mas qual deles?!
- O morto! O morto oficial! O que seguia para o cemitério!
- Hummm... eventualmente é onde todos vão parar...
- Estou a perder as estribeiras! Refiro-me ao morto, o que já o estava efectivamente, o que ia no carro funerário!
- Aaaaahhh! Perdão! Mas então, é só...



Ok. Vamos lá voltar atrás.
Porque raio há tanta dificuldade em encontrar um morto que segue, supostamente, num carro funerário?!
A razão é muito simples, dentro da confusão própria desta história.
Comecemos por conhecer Euristides Clumsy.

Euristides Clumsy era um tipo desastrado. Tinha herdado este nome porque sua mãe, Maria Clumsy, casara em Las Vegas, não no seu estado mais elucidado, e quis assim o destino que as núpcias fossem frutíferas, em conjunto com seu recente marido, Edward Clumsy, como convinha, e daí nascesse esta desafortunada criatura.

Mesmo à nascença não esteve na sua maior graça ao aparecer ao mundo, pois ao cortarem-lhe o cordão umbilical, resolveu dar um delicado mexer de mãos, não fossem duvidar que estava vivo.
Deixou de ser um movimento gracioso no mesmo momento que viu arrancada a cabeça de seu dedo, pela tesoura.
Não bastasse a má sorte do adeus à cabeça do dedo, sua mãe, não tanto por emoção mas por susto, terror ou desgosto, desmaiou ali mesmo ao primeiro vislumbre do que seria denominado por coelho esfolado pela enfermeira de serviço.
Assim se deu por iniciada a saga desastrosa que seria a sua vida e, naturalmente, a sua morte.


Podia descrever uma série de peripécias dignas de apontamento minucioso, no entanto, privarei os leitores de soltar excessivas lágrimas, sejam de riso ou de pena, escolhendo apenas alguns detalhes escabrosos da existência de Clumsy.

A sua infância poderá dizer-se que até foi sorridente, não tanto para ele mas para os que o rodeavam, tendo ele sofrido de todo o tipo de gozações e de acontecimentos que as provocavam.
Passou pela acne exarcebada, pela mudança de voz esganiçada, pelo aparecimento tardio dos primeiros pêlos no buço, que se assemelhava a uma plantação levada a cabo por alguém demasiado embriagado para o efeito...
Recebeu beijinhos da sua mãe até à entrada na faculdade, acompanhados de um queque de noz e um leitinho com chocolate. E quando digo entrada, era mesmo entrada. O portão de todas as escolas por onde passou.
Não que Clumsy não gostasse do queque e do leite... só não lhe agradava particularmente partilhar o momento com todos os que o rodeavam! E eram sempre muitos nestas alturas.
Passou pelos vexames mais cretinos e previsíveis: levar papel higiénico agarrado às solas, pelos corredores da escola, ter o nariz pouco limpo ou o fecho das calças aberto, enquanto apresentava trabalhos, chegar à escola primária com as calças molhadas da chuva permitindo à turma toda saber que usava collants debaixo das calças, após insistência da professora para que secasse as calças no aquecedor da sala... Ou quando teve que descalçar os sapatos molhados e mostrou as peúgas que tão desprezadas eram pela sua mãe, de tão rotas que estavam. "Foram prenda da minha avó", reclamava ele... Na verdade a avó não lhe ligava pevides, mas eram as únicas que tinha conseguido sem raquetes de ténis e escondia-as da mãe sempre que podia.
A única coisa sensata, aliás, que essa avó lhe tinha feito, percebia-o agora, tinha sido avisa-lo que usasse sempre meias e cuecas decentes e mantivesse as unhas cortadas, que nunca se sabia quando não íamos parar ao hospital mostrar as pobrezas...
Essa avó não tinha tido problemas com isso... quando morreu no hospital, tinha sido levada directa do banho... roupa não foi problema.

Mas conforme passavam os anos, mais patética se revelava a sua existência enaltecida por grandiosos acontecimentos. E quando digo grandiosos, não me refiro a acontecimentos notáveis, dignos de uma enciclopédia, de um livro de história, de um livro qualquer...

Euristides Clumsy nem no amor teve sorte. Teve por uns tempos, namorando com a dona do seu coração... mas o seu pedido de casamento frente a toda a família, incluindo a irmã gémea da sua amada, teve graves consequências. Sem falar na ofensa que foi para toda a família que, apesar de tudo, julgava suspeitar já de algo assim desde há muito pelas insinuações constantes da dita gémea.
Pois fora acontecer que esse pedido de casamento foi feito à gémea errada e pensando ele que pedia a mão a uma rapariga doce e honrada, meiga e dedicada, tal como ele apreciava, teve o infortúnio de tomar por sua noiva a gémea em tudo oposta.
Clumsy inicialmente não percebeu o desprezo da família, nem o desmaio da outra gémea que acabou por a levar à morte de desgosto amoroso.
Clumsy não percebeu muita coisa, até começar, já depois de casado, a ouvir falar em tendências sado-maso, preferências por máscaras de latex, afogamentos, estrangulamentos, chicotes e palavras-passe. Na verdade muito daquele vocabulário estava, para ele, descontextualizado, pois para haver afogamentos era preciso estar na praia, no rio, na piscina, para haver máscaras era preciso ser carnaval e palavra-passe era coisa para computador...
Clumsy não percebeu, até ao dia. E noite. E tarde.
Se a primeira gémea era uma doce flor perfumada que murchou na falta do seu sol, esta era uma planta carnívora (se de facto comessem pessoas) com uma vítima perfeita.
Clumsy mirrou e em nada melhorou no seu estatuto de desastrado.


... (continua)