Era quase o dia em que perdia tudo.
_ Ei! Espera aí! Perdias tudo?! Então, vais casar, tens uma mulher que te adora, não se vê sem ti nem consegue conceber tal coisa... Fazes o que gostas, com quem gostas, onde gostas, tens bons amigos. Todos se dão, o teus pais estão radiantes...
Ele continuou... Que mania, virem para aqui interromper, como se fizessem parte da história.
_ Como assim?! Somos amigos, não somos? Faço parte da tua vida, não?!
Humpf... Pedalava furiosamente, vento nos seus cabelos desalinhados.
Isto de os deixar crescer talvez não fosse boa ideia... queria mudar as coisas,a vida, o medo, os grilhões; o raio das correntes que lhe atavam os pés, com nome "cocozinho"... e disseram-lhe um dia "quando quero mudar algo na minha vida, dou uma tesourada no cabelo, mudo de penteado".
_ Quê? Que disparate... que criatura diz uma barbaridade dessas?!
Fazia de conta que não, mas o menor disparate que essa tal criatura dizia parecia-lhe sempre imbuído de uma sabedoria modesta mas certeira. Prova disso era não resistir em espreitar os diários que mantinha na net... Isso e querer saber secretamente se estava melhor ou pior sem ele. Se ele existia sequer.
_ Mas de que raio estás tu a falar?!
Alguém diga a este cretino que esta história é minha, por favor?!!
Mas, continuando, pensava no penteado. Pois... se algo tinha mudado, tinha sido para algo estranhamente pior. Quer dizer, não era o que diziam os que o rodeavam.
Agora é que ele estava bem! Almas gémeas, diziam! Se calhar gémeas demais, pensava.
Ou estaria bem? Onde estava a tal dor de barriga, a borboleta no estômago?!
Tinha ideia que a dor de barriga que sentia não podia adivinhar nada de bom. E decididamente não eram borboletas! No máximo morcegos vampirescos, abutres!
Depois de arrumar a bicicleta vou rapar o cabelo, decidiu.
_ Vais o quê?
Humpf...ainda não o levaram...
Vou rapar o cabelo e vou dar uma volta nisto, nesta desarrumação.
_Tarde demais, meu amigo! Estás afundadinho. Que vais dizer aos teus pais? As pais dela! Aos teus amigos! Como vais explicar? Que uma cabeleireireira psíquica ou psicóloga barata te disse que rapar é o que está a dar? Rapar da tua vida cabelos, pessoas, ideais...
Sabia agora que aquela vozinha irritante era a sua consciência. Uma chata da pior espécia, que tinha crescido habituada a repressões e a bons costumes.
Há que parecer bem! Deixa a farra para o imaginário, a indecência para a fantasia, o corpo para o pedalar: queimar gorduras, desejos e vontades, arrependimentos.
Chega a casa, beija a sua quase mulher e diz um amo-te mal amanhado enquanto se prepara para ir a net.
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