Estranha vida esta em que um dia cheguei, cabeluda, de triângulo escarlate berrante, sem que por um segundo pensasse na dicotomia que me iria afectar quando brincasse às gentes crescidas.
Não poderia nunca ser pessoa entre pessoas, de duas pernas, dois braços, cabeça no sítio.
Não sei se sempre me estranhei entre os outros, se estranhei os outros que se fechavam em círculo.
Eu ali, no meio, a tapar ouvidos e boca, para que não me deixasse enganar por interpretações erradas e para que não saísse a palavra torcida. Olhos abertos para me engalfinhar no mundo de alguma forma.
Não sei brincar às gentes crescidas. Pior: começo a invejar-lhes a capacidade de o serem. Porque sinto coisas que desejo para mim, e isto é, para mim, uma novidade - não o desejar, que em mim, é uma constante; disto, daquilo e daqueloutro; mas o que se descobre agora, como objecto de desejo.
Estranha vida esta em que nunca me irei encaixar na perfeição ou lá perto.
Que num dia, como o tempo, tudo por aqui é quente, acolhedor e no outro, cai um qualquer nevoeiro, uma morrinha irritante que não me deixa enxergar nada senão a puta da pedra em que o meu dedão bateu.
Se me acordo feliz por ter o privilégio de ser uma sobrevivente, logo haverá momento em que isso não me basta, que sobreviver não é mais que isso.
E eu, como cantava o outro, quero é viver.
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